03 março 2009

Lago é uma porção de água cercada de interesses econômicos e políticos por todos os lados

MARX E OS LAGOS

Texto do jornalista e escritor Juremir Machado da Silva,
publicado no jornal Correio do Povo em 02/3/09

Está provado que o bater de asas de uma borboleta na China pode afetar o clima em Palomas. É uma das tantas teorias comprovadas pela globalização. Até um dos meus ditados favoritos – os ventos do Norte não movem moinhos do Sul – caiu por terra com a descoberta dessa concepção holística do universo. Tudo se interliga. É por isso que posso afirmar sem medo de errar: a passagem do Guaiba da condição de rio a lago, mais do que significar um rebaixamento para a segunda divisão dos leitos de água, comprova uma das ideias mais rasteiras de Karl Marx ou, ao menos, de como Marx tem sido interpretado por analistas rasteiros como Lênin, Jarbas Passarinho e eu.

O engenheiro Henrique Wittler montou um slideshow, difundido na Internet, que mostra como o Guaiba passou de rio a lago. A lei 4.771, de 1965, estabeleceu a necessidade de áreas de preservação permanente destinadas a conservar ‘os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico da flora e da fauna, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas’. A faixa de preservação à beira do rio Guaiba foi fixada em, no mínimo, 500 metros. Muita gente não gostou. Alguns, embora nunca tenham sido explícitos em manifestações públicas, entendem que certas populações humanas, especialmente as mais abastadas, teriam o seu bem-estar assegurado se pudessem morar em confortáveis apartamentos ou mansões junto ao Guaiba.

Pode-se construir em áreas de preservação permanente, mas isso demanda autorização especial e imóveis voltados para determinadas finalidades de interesse público. Uma chateação. Não se podendo alterar a lei federal, descobriu-se uma terceira margem: seria o Guaíba de fato um rio? Criou-se uma comissão para refletir sobre essa questão quase metafísica. Com base no laudo dos notáveis dessa comissão, o governador Amaral de Souza, que não deixou saudades, decretou oficialmente, em 1982, que o Guaiba não era um rio, mas um lago. Amaralzinho foi o último representante dos militares a dirigir o Rio Grande do Sul sem o aborrecimento de conseguir votos dos cidadãos. Os interventores eram tão poderosos que podiam até transformar rios em lagos. A Lei Orgânica de Porto Alegre, de 17 de maio de 1990, continua chamando o Guaiba de rio. Os vereadores da época queriam seguir a lei de 1965 e manter os 500 metros de área de preservação permanente fixados para as margens dos rios. O governo do Estado encontrou um jeito de escapar à polêmica: só se refere ao Guaiba. Jamais ao rio ou lago Guaiba. A Prefeitura de Porto Alegre atualmente refere-se ao lago Guaiba. A Câmara de Vereadores, na Lei Orgânica, alterada em 2007, continua a referir-se ao rio Guaiba. Curiosamente, quando a Câmara de Vereadores trata do Pontal do Estaleiro, o rio vira lago. Qual a diferença essencial entre lago e rio? Um rio deve ter uma faixa de preservação permanente de 500 metros. Um lago, bem mais modesto, não requer mais de 50 metros. Não há dúvida, o bater de asas de uma borboleta na China pode afetar o clima em Palomas. Ainda mais que ministério público, tribunais, clubes de futebol e governo estão instalados nos 500 metros a serem preservados. Marx tinha razão: por trás do bater de asas de uma borboleta há sempre uma causa econômica. Lago é uma porção de água cercada de interesses econômicos e políticos por todos os lados.

Juremir Machado da Silva