26 março 2013

Porto Alegre, 241 anos

O excelente texto da escritora Carol Bensimon merece ser postado no dia do 241º aniversário de Porto Alegre.
Merece uma reflexão.
Que cidade queremos?

Calçamento de pedras da Rua Gonçalo de Carvalho - Foto: Cesar Cardia

Pelas ruas da cidade

A Porto Alegre que completa 241 anos esta semana parece optar por ser uma Capital com cada vez mais carros, menos pedestres e menos contato humano


Carol Bensimon*

Porto Alegre vai assoprar 241 velinhas nesta terça-feira, 26 de março. Eu continuo a amá-la incondicionalmente, o sol furando uma nuvem para alcançar o Guaíba, ruas tranquilas de paralelepípedos, almoço de domingo no Barranco, pinhão no inverno e dias compridos de verão. Mas é verdade que, às vezes, nós quebramos os pratos. Acontece quando minhas expectativas em relação a ela não estão exatamente afinadas com a sua transformação. Eu quero ir a lugares caminhando, mas ela joga as chaves do carro no meu colo. Ela tenta me seduzir com filmes argentinos, pães da Barbarella, um fim de tarde no Iberê, a floração das paineiras, mas não quer nem ouvir falar dos meus argumentos contra a duplicação da Beira-Rio. Um belo dia, eu elogio a arquitetura de um prédio dos anos 1950, e no outro, com uma risada meio sarcástica de filme B, ela encontra uma fresta nos recém colocados tapumes e me mostra uma montanha de entulho. Porto Alegre é assim. Então eu sento na sacada, olho para a figueira centenária que está na minha frente, e respiro fundo.

Há um consenso de que o trânsito em Porto Alegre está cada dia mais complicado. É fácil perceber o fenômeno: nós falamos sobre o assunto em jantares, registramos engarrafamentos no instagram, reclamamos no twitter da falta de táxis, enviamos sms para amigos dizendo o quão atrasados nós estamos por conta de uma tranqueira na Independência. Diante de tal cenário, surge a “iluminada” solução: o alargamento das vias. Para culminar, somos uma das cidades-sede da Copa de 2014, e não queremos fazer feio diante dos olhos do Primeiro Mundo.

Ora, a maioria desses mesmos países diante dos quais nós não queremos “fazer feio” já entendeu há alguns anos que investir na duplicação de ruas, em viadutos e trincheiras não resolve os problemas de mobilidade, comuns a todos os grandes centros urbanos. Não há truque, mágica ou retórica desonesta nessa conclusão; a duplicação de ruas e avenidas cria o que alguns especialistas chamam de demanda induzida. Isso quer dizer que, se a malha viária de uma cidade cresce, mais pessoas vão querer dirigir, e as que já dirigem provavelmente serão levadas a percorrer distâncias maiores. Em muito pouco tempo, as obras, cujo objetivo era o de aliviar o trânsito, são suplantadas pelo aumento da demanda.


Em 2004, nos Estados Unidos, uma análise baseada em dezenas de estudos prévios concluiu que “em média, um aumento viário de 10% leva a um aumento imediato de 4% no número de quilômetros percorridos por um veículo, o qual sobe para 10% – toda a nova capacidade – em poucos anos”. Pesquisas semelhantes foram e estão sendo conduzidas no mundo inteiro. No já distante ano de 1998, o ministro britânico de transportes, Gavin Strang, disse: “Fato é que não podemos resolver os nossos problemas de tráfego através da construção de mais vias”. Surpreendentemente, até a Newsweek – uma revista cujo perfil é muito mais conservador do que liberal – publicou um artigo em 2009 o qual afirmava com pesar: “A demanda dos motoristas tende a superar rapidamente a nova oferta; hoje, os engenheiros reconhecem que construir novas estradas geralmente torna o tráfego pior”. Todas essas citações foram retiradas do mais recente livro do urbanista Jeff Speck, Walkable City: How Downtown Can Save America, One Step at a Time.

No ano passado, eu conheci Los Angeles. Los Angeles é provavelmente a cidade mais planejada e adaptada à supremacia do carro no mundo inteiro. Quer saber o que acontece? As avenidas engarrafam. As freeways engarrafam. E voltar a pé até o hotel, mesmo em uma zona boa como a “Miracle Mile”, faz você ter a sensação de que está prestes a ser atacado a cada esquina porque ninguém mais está fazendo isso.
Mas vamos voltar a Porto Alegre.

Eu não sinto vergonha em admitir que tenho um carro (ok, só um pouco). Talvez eu possa mesmo partir desse fato para recomendar a todos que façam um uso responsável de seus automóveis. Eu saio muito pouco com o meu carro. Tudo que é possível fazer caminhando, eu faço. Se eu percorrer mentalmente o mapa de Porto Alegre agora, eu diria que posso alcançar com minhas próprias pernas, e sem cansar muito, ao menos seis bairros da cidade. Infelizmente, nesses percursos, eu não cruzo com tantas pessoas como eu cruzaria, vamos dizer, em Paris. Isso tem relação com os hábitos arraigados a cada cidade, é claro, mas tais hábitos não surgem sem razão; caminhar ou não caminhar está diretamente ligado a questões de densidade, diversidade, e até mesmo de estética.


Porto Alegre é uma cidade muito espalhada e, a cada ano, ela se expande mais, engolfando cantos rurais e desconhecidos da Zona Sul, dos altos da Protásio Alves, dos arredores do aeroporto. Quanto mais distante do trabalho uma pessoa mora, mais quilômetros ela precisa percorrer, e portanto mais tráfego ela irá gerar. Não precisamos ser urbanistas para entendermos essa parte. Assim, uma baixa densidade (habitantes/quilômetros quadrados) costuma ser problemática porque provavelmente obriga as pessoas a se deslocarem uns bons quilômetros até o local de trabalho, os serviços, o lazer, etc. E a solução para aumentar a densidade urbana, ainda que isso possa nos enganar à primeira vista, não passa pela construção de espigões residenciais. A prova disso é que o Bom Fim, um bairro onde predominam os prédios de poucos andares, é o segundo mais denso de Porto Alegre, perdendo apenas para a Cidade Baixa. Quem conhece o Bom Fim, além disso, consegue entender o quanto uma densidade mais elevada acaba por estimular uma “vida de bairro”. E isso é algo de que todos nós, moradores de outras áreas da cidade, deveríamos sentir inveja.

Uma cidade voltada para o carro, além de não estar livre dos engarrafamentos – mas pelo contrário –, e de obrigar, por essa própria lógica, os deslocamentos excessivos, costuma ser, além de tudo, uma cidade não muito bonita de se olhar. Pense em um viaduto. Pense agora em todo o perímetro urbano que se deteriora instantaneamente quando um viaduto é construído.

Muito me surpreende, portanto, que a prefeitura esteja executando uma obra dessas quase à beira do Guaíba, na avenida Pinheiro Borda, a cerca de 600 metros da Fundação Iberê Camargo. Uma área, enfim, que não precisa de mais carros, mas de gente.

Gostaria de fazer um agradecimento especial aos porto-alegrenses donos de cachorro que levam seus cães para que façam as necessidades fora de casa. Essa gente ocupa a rua, inclusive em horários improváveis.

Não quero agradecer de forma alguma àqueles que frequentam uma academia, mas não saem a pé sequer para comprar o pão de cada dia.

Todos nós nos sentimos atraídos por cidades bonitas. É por isso que Paris, Amsterdã, Veneza, Nova York são alguns dos lugares onde gostaríamos de passar as férias. Mas “férias” é algo que acontece uma ou duas vezes por ano. No resto do tempo, permanecemos trabalhando e tentando nos divertir em nossa própria cidade. Então por que não fazer dela o lugar mais bonito possível?

Não se trata de uma questão fútil. Em A Arquitetura da Felicidade, o filósofo Alain De Botton apresenta uma ideia segundo a qual nossos múltiplos “eus” são evocados de acordo com o que está ao nosso redor. E, se às vezes parecemos distantes do que julgamos ser nosso “eu” verdadeiro, talvez seja porque o lugar onde estamos não o estimule muito. Nas palavras de De Botton: “O nosso acesso a ele [ao “eu”] é, a um grau modesto, determinado pelos lugares onde estamos, pela cor dos tijolos, a altura dos tetos e o traçado das ruas. Num quarto de hotel estrangulado por três vias expressas ou numa área devastada com prédios enormes e mal conservados, nosso otimismo e propósito tendem a se exaurir, como água num vaso furado. Começamos a esquecer que um dia tivemos ambições ou motivos para nos sentir animados e cheios de esperança”.


Um dos bairros mais queridos e valorizados de Porto Alegre é, sem dúvida, o Moinhos de Vento. Por quê? O bairro tem vida diurna e vida noturna. Bancos, consultórios, cafés, restaurantes. Mas há mais do que isso. Trata-se de uma das áreas mais esteticamente agradáveis da cidade. Essa não é apenas uma opinião pessoal. Quantas vezes você já viu o substantivo “charme” ou o adjetivo “charmoso” ser relacionado a esse lugar? Pois bem, o charme do Moinhos de Vento não vem apenas em um cappuccino caro; ele exala de seus casarões antigos, dos jardins do DMAE, da relativa harmonia visual encontrada em ruas como a Dinarte Ribeiro ou a Barão do Santo Ângelo.

Triste pensar, portanto, que, no final do ano passado, um edifício salmão de quatro andares da década de 1950, localizado no encontro da Mostardeiro com a Comendador Caminha, tenha sido demolido repentinamente, causando indignação nas redes sociais. O local agora está cheio de tapumes sem nenhuma identificação. Tenho certeza de que o futuro empreendimento, seja ele o que for, será vendido com o apoio dos atributos do bairro; prevejo o uso excessivo de termos como “beleza”, “charme”, “caráter único” e “encanto” em folders e demais peças promocionais. A ironia é que, ao demolir o pequeno prédio da Comendador Caminha, a construtora em questão esteja ajudando a acabar justamente com as características que tanto valorizam o bairro.

Quando eu estava longe de Porto Alegre, morando em outro continente, a coisa da qual eu mais sentia falta era o verde. Porto Alegre é uma cidade um bocado arborizada. Nossas ruas têm cerca de 1,3 milhão de árvores, quase uma por habitante. A elas, somam-se os bonitos jardins de muitas casas e edifícios, a vegetação ao longo da orla do Guaíba, os parques, as praças. Essa presença incansável da natureza torna as nossas vidas muito melhores ou, como diria talvez Alain De Botton, desperta o nosso “eu” mais belo, entusiasmado e cheio de esperança. Tenho certeza de que somos muitos a reconhecer esse como um dos maiores trunfos de nossa capital, e a prova disso é que nossas árvores estão muito mais protegidas, em termos legais, do que nosso patrimônio histórico. Em outras palavras, é muito mais fácil derrubar uma casa do que um ipê.

Eu, particularmente, gosto até desses parasitas – ou seriam epífitas, eu não sei – cujas flores roxas e rosa aparecem e duram apenas uma questão de dias. Gosto da grama que nasce entre as pedras do calçamento, dos guapuruvus que alcançam uma altura inimaginável, de todas as árvores que florescem e eu nunca sei o nome, de raízes expostas, de calçadas deformadas, das árvores que engoliram lixeiras (há uma na minha rua) ou das que se misturaram aos muros vá saber como. E depois há os pássaros incríveis que vêm cantar perto da janela. As aves de rapina que rondam a cobertura do meu prédio. É por isso que Porto Alegre e eu, nós quebramos os pratos às vezes, mas então voltamos a nos entender. Não sei o que devo esperar, de qualquer maneira, de nossos próximos anos juntas.

Publicado com autorização da autora,  texto no caderno Cultura do jornal Zero Hora 
Imagens: Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho

*Carol Bensimon é uma jovem escritora brasileira.
Publicou contos nas revistas Ficções, Ficção de Polpa e Bravo!, assim como no jornal Zero Hora. 
Seu primeiro livro foi Pó de Parede (Não Editora, 2008), reunindo três novelas. 
Em 2009, depois de receber uma bolsa de estímulo à criação literária da Funarte, escreveu Sinuca embaixo d'água, publicado pela Companhia das Letras. O livro foi um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante e do Prêmio Jabuti de 2010 na categoria Romance.
Foi uma das autoras incluídas na coletânea Histórias femininas, publicada pela editora Scipione em 2011. O livro reuniu contos de autoras contemporâneas, como Índigo, Cecília Giannetti e Andréa del Fuego.
Bensimon foi selecionado em 2012 como um dos 20 melhores jovens escritores da revista britânica Granta, "que indica os nomes que irão construir o mapa da literatura brasileira". No Brasil a revista é publicada pelo selo Alfaguara, que pertence à editora Objetiva.

(fonte: Wikipédia)